Vasco Martins Morna

O meu amor pela Morna começou quando eu tinha dez ou onze anos. Em casa da minha avó Benvinda, havia discos do Bana, do Morgadinho, Ritmos Cabo-Verdianos, da Cesária entre outros. O meu tio Djunga era um melómano e o meu pai, Chiquin, tocava violão e também adorava mornas. As minhas tias, as irmãs Lili e Bibi Medina sabiam tocar mornas ao piano muito bem . Tive com ambas uma aprendizagem auditiva e técnica básica. Em casa do senhor Naldin Gonçalves, que eu frequentava, a morna e o tango estavam sempre presentes. A Casa do Leão importava (e editava) discos de música cabo-verdiana. Foi lá que ouvi pela primeira vez o famoso álbum ‘Sodade’ do Humbertona.

No Mindelo a Morna se projetava nos bares, convívios e festinhas (ainda se dançava a Morna no fim dos bailes). Enfim bons ambientes que alimentaram a minha imaginação, a minha aprendizagem oral (quanto a mim a primeira e melhor aprendizagem da Morna) e as minhas inventivas como compositor, músico e estudioso da Morna que perduram até agora.

A primeira composição foi uma morna instrumental que gravei ao piano numa ‘cassete’ editada pelo Daniel Victória, em 1976. Mais tarde, nos anos 80, escrevi para este tema uma letra e tornou-se a morna ‘Fogue na olhar’. Foi também na metade dos anos 70 que comecei a fazer os primeiros estudos ainda básicos da Morna, tentando decifrar os seus segredos musicológicos. Cheguei a oferecer ao Humbertona parte desses manuscritos.

A partir de 84, quando regressei de Paris, na Galeria Nhô Djunga os contatos com os mornistas tornaram-se mais estreitos. Com o guitarrista e compositor Voginha empreendi uma verdadeira viagem no violão mornista. Fomos os dois várias vezes à casa do Luís Rendall  na Avenida da Holanda, quando ele vinha de férias. O Voginha tem um bom reportório dos solos do Luís Rendall.

Com o extraordinário violinista Travadinha, a quem cedi um violino que ele gostava, e com o qual ele gravou os seus álbuns, os contactos foram intensos. Organizámos na Galeria Nhô Djunga vários concertos com ele.

Em 1985 conheci o Lela de Maninha que tinha vindo de férias à sua ilha (vivia em Angola). Sempre admirei a sua morna ‘Odjos Stancadinhos’. Com o Manel d´Novas nasceu uma amizade frutífera. O mesmo com o Ti Goi, Bana , Frank Cavaquin, Dany Mariano, Chico Serra, Bau, Djosa Marques e tantos outros.

Ainda em 1985 (parece ter sido um ano bom e criativo), em Lisboa, no estúdio Jorsom quando estava nas misturas do álbum ‘Para além da noite’, uma viagem no universo de algumas mornas de B.Léza, tive a ideia de compor algumas mornas com letras.

A primeira pessoa para as interpretar que se ‘apresentou’ no meu espírito foi a Cesária. A ideia foi de compor mornas que fossem ela própria, isto é, que ela cantasse as coisas fundamentais da sua existência: o destino, o amor, a própria morna, a amizade, as esperanças, os percalços.

Quando cheguei a S.Vicente, fui uma noite ter com ela na escadinha de madeira da loja Toi Duarte onde ela se sentava sozinha ou acompanhada, antes do seu giro noturno. Sentei-me ao seu lado e falei com ela sobre o projeto. Ela ouviu-me sempre calada. Por fim houve um silêncio. Aquele silêncio que ela sempre impôs quando queria. E disse-me por fim: ‘bô sabê ondê k’bô t’encontráme’.

Nos anos seguintes conversei com a Cesária em muitas ocasiões. As primeiras mornas começaram a surgir. O mais delicado eram os textos, devido ao facto que as ideias que ela tinha sobre a vida (a sua vida), eram minimalistas com frases curtas, incisivas. Mas profundas. Ela não se interessava em falar da sua vida com pormenores. Comecei a evitar diálogos diretos e a conduzir as nossas conversas na direção que ela propunha, e tirar partido das metáforas, dos círculos, das frases desgarradas.

Mas quis o destino que este projeto fosse parar à voz da sua prima-irmã Hermínia. Cinco mornas foram gravadas no álbum ‘Coraçon Leve’ em Paris, com arranjos do Voginha e meus. Este álbum saiu em 1998 e teve um belo percurso.

Para a audição das cinco mornas incluídas neste álbum:

Nos princípios dos anos 2000, comecei a compor mornas inéditas, para serem interpretadas pelo Ildo Lobo, acompanhado pela Orquestra Clássica de Évora e um violão cabo-verdiano. Seria financiado por um mecenas português, admirador do Ildo, o qual nunca soube o nome. Começamos os primeiros ensaios com a morna ‘Pa longe um ta bai’, as duas partes (…)

Em 2014, dentro do projeto CEM, na altura com sede no Mindelo, escrevi a proposta do Dia Nacional da Morna, apontando o dia 3 de dezembro, dia do nascimento do luminoso compositor de mornas, B.Léza. Foi instituída pela Assembleia da República em fevereiro de 2018.

Comecei a publicar algumas entrevistas com compositores e intérpretes da Morna, começando Humbertona, por Betú e Vuca Pinheiro.

Em 1989, depois de ter viajado à ilha da Boa Vista para pesquisa, saiu o meu primeiro ensaio sobre a Morna, patrocinado pela UNESCO, e em 2016, o segundo livro, desta vez mais musicológico.

A morna ‘ Um porta aberte’, versão de Bertânia Almeida acompanhada por Bau:

As minhas incursões na Morna com orquestras têm sido uma constante ao longo dos anos. Começou com o álbum ‘Para lém da Noite’ uma viagem para oboé e cordas, como já citei, em algumas mornas de B.Léza.

Com essa estética, prefiro a ‘linearidade’ , tendo em conta o ‘espirito’ da Morna e as suas alocuções emocionais e expressivas.

Em 2002 foi estreada a primeira versão da ópera Crioulo, na rua de Lisboa no Mindelo na ilha de S.Vicente, com música e libreto de minha autoria e mise en scène de António Tavares. Foi gravada pela RTC a morna ‘Ser’ interpretada pelas vozes solistas Djurumani, Sara Tavares, Paulo Maria Rodrigues, Bau ao violino e seu grupo acústico, Coro Voz d’Alma, Coro de Câmara de Lisboa e Vasco Martins nos sintetizadores. Em 2009 Crioulo foi estreada em Lisboa, no Centro Cultural de Belém.

Interpretação da morna-galope ‘Filosofia’ por Bau.

Em 2016 saiu o álbum ‘Viagem no Imaginário da Morna’ peças diversificadass para orquestra clássica e orquestra de cordas, editado pela Orquestra Clássica do Centro (Coimbra).

E a senda da Morna persiste. Mornas instrumentais e, mais raramente, com letra. A mais recente é ‘ Móda um brisa’ composta em julho de 2023. Noticiei via redes sociais, que esta morna estava disponível em formato demo (canto com acompanhamento, cifras e letra). Teve alguma aderência junto a interpretes ou melómanos. É uma morna simples com uma letra simples. Para fluir simbolicamente no ‘rio da vida’. Este convite permanece ainda. Para quem a deseje ter, pode contactar-me via email: vascomartinsmusica@gmail.com

Filosofia, cantada pela Hermínia que a celebrou( live concert):